Visão Jurídica: O caso Daniel Alves e a palavra da vítima

O especialista Felício Costa analisa, sob a visão jurídica, o caso que envolveu o ex-jogador da Seleção Brasileira. E faz um alerta importante. Confira!

Condenado em primeira instância, o jogador acabou recentemente absolvido por um tribunal espanhol. Mas esta decisão não teve a mesma exposição na mídia.

Daniel Alves - 2025
Jessica Alves x Daniel Alves: duas versões

Por FELÍCIO COSTA


São Paulo, SP, 22 (AFI) – As cifras do crime de estupro no Brasil impressionam. Segundo o IPEA, apenas 8,5% deles são reportados às autoridades, enquanto se estima um total de 822 mil casos por ano, ou seja, quase dois por minuto. Fora do país, os números também assustam, tendo a Organização Mundial da Saúde estimado que uma em cada três mulheres ao longo da vida é submetida à violência sexual, ou à violência física por seu parceiro.

Naturalmente avivada ao tratar desse assunto, a revolta ditou o tom da cobertura do caso Daniel Alves, acusado de crime sexual ocorrido em uma boate na Espanha, durante a agem entre os anos de 2022 e 2023.

MENOR DIVULGAÇÃO DA ABSOLVIÇÃO

Condenado em primeira instância, o jogador de futebol acabou recentemente absolvido por um tribunal espanhol. Essa última decisão foi divulgada em mídia, ainda que não tenha alcançado a mesma exposição que as notícias predominantemente contrárias a Daniel Alves expostas nos últimos anos, que apontavam as diversas alterações no relato dos fatos fornecido pelo jogador.
_________________
UM REINÍCIO EM CLUBE BRASILEIRO?
_________________

A respeito desse ponto, necessário dizer que um processo penal não avalia tão somente o contraste entre a palavra da vítima e do acusado. Essas se somam a diversos outros elementos para melhor reconstrução dos fatos.

A decisão absolutória expressamente destacou que não está a confirmar como verdadeira a exata versão do réu apresentada nos autos. Ainda que não confirmada a tese defensiva, no frigir dos ovos, o que se coloca à prova é a tese acusatória de prática sexual não consentida e sua sustentação frente às provas.

Daniel Alves - 2025
Daniel Alves absolvido pelo Tribunal.
Foto: Reprodução de Video

PONTO FRACO
Esse o ponto fraco, pois a versão acusatória que afirmava a prática de estupro contradizia outros elementos dos autos, impedindo que uma condenação alcançasse os padrões de prova exigidos no âmbito criminal.

O debate sobre qual palavra vale mais, a do criminoso ou da vítima, portanto, tem valor reduzido quando entendemos que condenação alguma poderia ser alcançada sem elementos de corroboração suficientes.

Aliás, a genérica afirmação de que a vítima não teria razão para mentir, empregada na inicial sentença condenatória, é por vezes enganosa, pois a partir daí implica na indistinta aceitação de qualquer relato, ainda que contrário às demais provas. Trata-se de um “chavão”, expressão genérica que serve para tratar quaisquer situações sem levar em conta um caso em concreto.

Daniel Alves - 2025
Daniel Alves deixou a prisão de cabeça erguida, porém, sob protestos de feministas.
Foto: Reprodução de video

COMO AGIU O TRIBUNAL

Dito isso, o tribunal espanhol reconheceu que raramente é possível obter tantas provas como se arrecadou nesse caso, permitindo assim contrastá-las com as versões apresentadas. Sendo tantos os elementos, necessário seria também, de acordo com o tribunal, analisar com rigor a tese acusatória em contraste com a presunção de inocência.

Sob essa análise que declaração da vítima contou com contradições relevantes, principalmente em contraste com as câmeras de segurança da boate e perícia realizada após o suposto crime. As câmeras teriam registrado harmônico contato entre acusado e vítima e, assim, desacreditaram a versão da vítima no sentido de que havia desde o princípio alguma animosidade.

Em acréscimo, a prova pericial detectou material biológico do autor no corpo da vítima, dentre outros elementos, que comprovaria a prática sexual. Contudo, as evidências encontradas permitiriam uma reconstrução fática diferente daquela exposta no relato da vítima, no que diz respeito ao que ela disse que aconteceu, ou que não aconteceu, no cômodo reservado onde o crime teria ocorrido.

VERACIDADE EM DÚVIDA
De acordo com o tribunal, a inicial condenação realizava saltos argumentativos e contava com contradições relevantes, especialmente ao colocar dúvidas sobre a veracidade de parte do relato da vítima, mas se fiar por absoluto no trecho em que reportava a falta de consentimento para a prática sexual. Ora, é claro que alguém pode dar um relato majoritariamente verdadeiro e, em determinado ponto, inserir uma mentira.

Ocorre que, aos olhos do Judiciário, a constatação de uma contradição entre fatos provados e um relato acaba por retirar sua credibilidade nalguma medida. Nesse sentido, concluiu o tribunal que a falta de voluntariedade da prática sexual estaria unicamente provada pela palavra da vítima, mas em contraste com provas que objetivamente retirariam a credibilidade do que ela narrou. Por isso, a absolvição se mostrou necessária.

POSIÇÕES SEMELHANTES
É certo que os tribunais do Brasil e da Espanha apresentam posições semelhantes no que diz respeito à valorização da palavra da vítima em crimes sexuais. Por aqui, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “A palavra da vítima – quando não está em conflito com os elementos produzidos ao longo da instrução penal – assume importância probatória decisiva”, demonstrando grande abertura para o relato de quem sofreu a violência.

A violência contra a mulher é cotidiana e esforços para extingui-la são sempre necessários. Dito isso, o caso Daniel Alves mostra também a necessidade de impedir condenações injustas, exigindo certo patamar de provas sob risco de cometimento de outra injustiça ao colocar inocentes na prisão.

Daniel Alves
Felício Costa: jurista especializado

DADOS DO AUTOR

Felício Costa, advogado criminalista, mestre em Direito Processual Penal pela USPSP,
autor do livro Pena Privativa de Liberdade Decorrente de Colaboração Premiada –
Aplicação e Execução (Ed. Juruá), sócio de Reis Aragão & Ikaez Advogados